terça-feira, 15 de outubro de 2019

Descaracterizar para popularizar?

E não é que se correu 42,195 km – distância de uma maratona – para menos do que duas horas?
O autor da façanha foi o queniano Eliud Kipchoge, apontado pela grande maioria dos que acompanham corridas de longa distância como o melhor maratonista da atualidade, quiçá da história, afinal de contas ele tem o melhor tempo do mundo – 2:01”38 -, obtido na maratona de Berlim em 2018 e vitórias nas principais provas.
De fato conseguir correr a citada distância em menos de duas horas - mais precisamente 1:59’40” - é, sem dúvida, digno dos mais efusivos elogios e admiração, pouquíssimos acreditaram que o feito seria possível nessa década, inclusive eu, que se registre.
Na contramão da empolgação com a quebra da barreira das duas horas deve se trazer luz sobre o seguinte questionamento: até que ponto uma modalidade pode ter sua essência descaracterizada em prol da conquista de atenção?
Tal pergunta se aplica à situação em função de a estupenda marca ter sido alcançada sob condições não usuais em provas “oficiais”, dentre essas vantagens devem ser citadas: (i) o acompanhamento de 41 corredores de elite que se dividiram em grupos para em cada parte do percurso dar ritmo e quebrar a resistência do ar, tal como atuam os gregários no ciclismo; (ii) ciclistas que levavam e facilitavam a hidratação do atleta; (iii) um carro elétrico que projetava na pista uma luz verde que servia de referência de ritmo, eliminando assim o risco de não cumprir a estratégia traçada; (iv) um percurso plano com longas retas e protegido do vento por grandes árvores; (v) pouca diferença de fuso horário em relação ao do Kenya; (vi) baixa umidade; (vii) torcedores para o apoiarem durante o desafio. 
Poderia se acrescentar aqui a eficácia dos calçados utilizados, mas, apesar de tudo levar a crer que realmente influenciaram, seriam necessários mais estudos científicos confiáveis para a devida suposição se confirmar.
Reitero que os pontos elencados acima em nada arranham o talento e a qualidade de Kipchoge, a ideia do artigo é simplesmente provocar a reflexão sobre a descaracterização de uma tradicional competição. 
Atenção especial também deve ser dedicada ao patrocinador do desafio, uma multinacional de produtos químicos chamada Ineos, que já estava presente no segmento esportivo através da recente aquisição do Team Sky, uma das principais equipes de ciclismo.
Ver uma empresa investir no esporte, ainda que seus produtos não tenham associação direta com a atividade, não é algo muito frequente, fato que pode ter causado a deflagração de algumas críticas relacionando os investimentos "esportivos" a um suposto plano para melhorar a imagem da Ineos diante de algumas polêmicas que se envolveu no passado. E se fosse isso? Qual seria o problema? Acreditar no esporte como um meio de associação aos seus valores é pensar de forma estratégica e como tal, elogiável.
Em busca dos verdadeiros objetivos do investimento, descobrimos que o  principal acionista da empresa o fez por considerar a iniciativa divertida.
Ainda que decepcionante, não há como negar que se trata de um raciocínio bastante coerente com a linha adotada de se descaracterizar uma prova tradicional em busca de diversão sem considerar as consequências – positivas e/ou negativas – que a modalidade pode vir a sofrer no futuro.
Pelo visto, talvez seja mais fácil quebrar a barreira das duas horas do que os paradigmas de algumas empresas acerca do que efetivamente é e para que serve o marketing.




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